por Flávio Oliveira
É certo que houve uma época em que eu amava mais intensamente. Porém, não sei dizer, se devido a isso, ou porquê eram fáceis os caminhos da cidade, ou ainda se a força daquele hábito tinha a ver com o fato de o transporte noturno me parecer seguro em tempos de relativa calmaria, quando a violência urbana ainda não havia me mostrado seus afiados dentes. Sei é que com meus dezenove anos, aos domingos, eu ficava até mais tarde no namoro.
Talvez fosse mera preguiça. Ou quem sabe eu adiava o tempo de ir embora, simplesmente para ter a oportunidade de contemplar o senso de organização de minha namorada, que a partir de uma certa hora começava a mexer em seus papeis, deixando tudo arrumado para o dia seguinte, para o resto da semana, para o resto da vida.
Minha namorada possuía um invejável sentido metódico que eu nunca tive, de dar ordem aos pensamentos e às coisas. Talvez fosse essa qualidade que eu ambicionasse adquirir na observação do vai-e-vem das mãos dela sobre a escrivaninha, remexendo em seus cadernos, agendas e lapiseiras. Vai ver que era por isso que eu fazia questão de prolongar-me ali, refestelado no sofá com a TV ligada nos Gols do Fantástico, um olho nas jogadas, o outro no espetáculo da arrumação dela e a mente como sempre flutuando fora das paredes da casa.
Depois, porque já não tinha jeito, pegava o busão no final da linha, na companhia muda de outros gatos pingados sonolentos como eu, que também iam retornando de suas visitas domingueiras. O ônibus espichava trajeto pelas avenidas pontilhadas de luzes, para em seguida se enroscar no labirinto mais escuro das ruas dos bairros, até desembocar novamente em outros caminhos iluminados. Desatento por natureza, eu tentava do meu jeito não perder o ponto do desembarque, marcando pelas curvas e pelo tempo fluido dos meus devaneios a partitura do caminho, confiante que eu era na proteção do anjo do acaso. De certo ele não haveria de me faltar.
E não faltava mesmo. Em geral, quarenta minutos depois de iniciada a viagem, lá estava eu do outro lado da cidade, apeado do coletivo na velha esquina deserta de sempre. Descia e ficava observando os faroletes traseiros do ônibus se afastarem na noite escura. Nessa hora me batia um não sei o quê de angústia, uma vaga sensação de abandono, como se todo o meu universo fosse desaparecendo ao longe junto com aqueles faroletes, que em segundos já não eram mais do que distantes pontinhos vermelhos, depois um nada além do breu e a recorrente certeza de me saber só.
Passava uma das mãos pelo rosto e pelos cabelos desgrenhados, apertando os olhos até inchar o nariz, como que me esforçando para despertar de um transe. Depois sacudia a cabeça, respirava fundo e seguia o caminho. Se tudo corresse bem, seriam quinze ou vinte minutos de marcha até em casa, no meu passo lento e distraído. Por causa dele os amigos do bairro me chamavam de PV ou de FO (poeta viajandão, ou filósofo odara), coisa que eu nem ligava, pois o que no falar deles conotava um benevolente deboche, para mim pelo contrário era um tipo de reconhecimento que até me ajudava a lidar melhor com o meu vacilante ego. Caminhava até a facha de pedestre a fim de atravessar as quatro escuras e velozes pistas da Navegantes, àquela hora já meio deserta, para depois entrar pela Avenida dos Aedos, praça Calipso, até o quarteirão da minha casa.
No domingo em que tudo aconteceu, as coisas se deram exatamente conforme esse script, até o momento em que cruzei as quatro pistas e comecei a caminhar pela Aedos. Ia eu com a cabeça no mundo da Lua, tentando me lembrar de um poema do Torquato. Ou seria do Capinã? Não, era mesmo do Torquato. Tinha uma parte de que eu gostava e que dizia mais ou menos assim: Eu sou como eu sou / agora / sem grandes segredos dantes / sem novos secretos dentes. Baita poema – eu pensava. – Mas eu preciso me lembrar dele por completo… Ele parece que fala diretamente pra mim. Quer me dizer algo, mas eu ainda não entendi o quê. Eu preciso me lembrar… Eu sou como eu sou agora… Sem grandes segredos dantes, sem novos secretos dentes…
Ia distraído com esses pensamentos quando de repente, bem às minhas costas, quase nos meus calcanhares, um carro brecou violentamente, guinchando os pneus no asfalto, com a buzina disparada a todo volume. O som da buzina e dos pneus cantando, juntamente com a aproximação daquele mastodonte férreo, produziu em mim um súbito terror paralisante, de não saber nem para que lado saltar, chocado pela iminência da morte e pela paúra de perder os dantes, os dentes e tudo mais. Segundos depois, ao notar que meus dentes permaneciam como dantes no seu lugar e que eu continuava de pé, inteiro e com o coração batendo, devagar, virei-me para trás ainda com a respiração suspensa. Nesse momento, os poderosos faróis que ofuscavam tudo a minha volta piscaram duas vezes, enquanto o motor acelerava forte sem que o carro se movesse. Petrificado estava e petrificado continuei por alguns instantes, os quais me pareceram frios e intermináveis como a órbita de Plutão. Depois ouvi a voz que gritava da janela do condutor entre muitas gargalhadas:
Fala, poeta! O quê tu tá fazendo andando sozinho nessa quebrada, meu irmão? Se liga que a rua tá cheia de lobisomem! Entra aqui, brother, que a gente te dá uma carona até em casa.
Ao reconhecer o amigo de infância que morava perto da minha rua, soltei com um profundo suspiro o ar represado dentro dos pulmões e pude sentir novamente o sangue circulando nas minhas faces.
– O quê é isso, brou? – Respondi, ainda me recuperando do susto, com meu jeito manso e arrastado de falar, mas sem achar a menor graça na brincadeira. – Como é que tu me dá uma dessas, pô? Quase trinquei de susto! Lance mais sem graça, hein?
– Larga de ser chorão, Poeta! – Continuou ele às gargalhadas, descendo do carro e me dando um abraço amistoso. – Nós vamos te dar uma carona até em casa, vai ouvindo uma musiquinha bacana, sentadão de boa… Tem que reclamar do quê, hã? Abriu a porta traseira do carro e me fez entrar com tapinhas nas costas, sem que eu oferecesse a menor resistência. Na verdade, eu nunca oferecia mesmo.
Meu amigo era em quase tudo diferente de mim. Enquanto minha aparência desleixada e meu jeito distraído davam-me ares de garoto desajustado, ele pelo contrário encarnava o tipo playboy marombado, com suas roupas e carro da moda. Era extrovertido, de riso fácil e tinha sempre alguma resposta espirituosa na ponta da língua. Inteligente e bem educado, mesmo ostentando a justa fama de arruaceiro, era hábil em se fazer querido por todos. Gostavam dele até mesmo as digníssimas senhoras do bairro, que reputavam os rumores de seus mals-feitos à intrigas e maledicências, ou quando muito, à influência das más companhias. Sabiam que se tratava de um rapaz de boa família, conhecida na sociedade. No entender delas, a recente verticalização do bairro e a consequente abertura de um novo comércio andava atraindo para a região pessoas vindas sabe-se lá de onde. O bairro já não era como antes um reduto apenas das melhores famílias da cidade, de modo que os meninos ficavam expostos a todo tipo de influência perniciosa.
Dentro do carro, que recendia a estofado de couro recém saído da fábrica,, o sujeito no banco do carona cumprimentou-me de maneira displicente, apenas com um menear de cabeça, sem olhar para mim. Retribuí o cumprimento tentando parecer amistoso, porém contido como era mesmo do meu feitio, pois embora eu não fosse exatamente tímido, estava longe de ser expansivo como o nosso amigo em comum. Notei que o sujeito era um dos que ficava o dia inteiro na porta da padaria ao final da avenida principal do bairro, falando alto e acelerando motocicletas ruidosas. Era um pessoal com quem eu tinha mesmo pouca proximidade, não apenas porque a padaria ficava longe da minha casa, mas principalmente por não guardar quaisquer afinidades eletivas com o grupo. Afinal, embora não o fosse de verdade, eu me sentia como um filósofo ou poeta, estando portanto num patamar pretensamente superior ao daqueles playboys arruaceiros. Ou quem sabe eu não me aproximasse deles, simplesmente por ser de fato aquele camarada esquisito da rua Atena, que andava por aí como um sonâmbulo e mal sabia falar com as pessoas.
– Tá com pressa, Poeta? – Perguntou o meu amigo já arrancando com o carro em marcha lenta, sem esperar a resposta e aumentando o volume do som. – Vamos dar um rolezinho. – Continuou com o seu jeito alegre, em voz alteada para competir com a música que fazia tremer os alto-falantes. – É hora da ronda. Vamo vê se não tem nenhum forasteiro mané dando mole por aí, né não, Sapão? – Dizia, gesticulando com uma das mãos fora do volante e batendo na perna do sujeito ao lado, que continuava sério, sem fazer qualquer comentário, com cara de poucos amigos.
O tal Sapão ali na frente agora me parecia um tipo bem esquisito. Ele não demonstrava o menor senso de humor e ficava o tempo todo olhando para fora, como um policial na sua viatura ou um desses mafiosos dos filmes do Brian De Palma, enquanto o carro seguia deslizando devagar pelas ruas do bairro. Eu que não era mesmo de muito falar, limitava-me a reagir com poucas palavras, à enxurrada de frases atropeladas que o meu amigo marombado ia dizendo entre risadas e gesticulações. Naquele momento, o que eu queria de verdade era me lembrar do poema do Torquato e ficar pensando nele, de preferência deitado em minha cama. Mas como em tudo na vida, ia me deixando arrastar pelas circunstâncias e pela vontade dos outros. Sem grandes segredos dantes… sem novos secretos dentes…
– Já ouviu essa sonzera, Poeta? John Cougar. O cara toca muita guitarra! Muito doido, né não?
– É…
– Tava namorando até agora?
– Tava.
– Tá apaixonadinho, hein?! Tu é sangue bom, namora direitinho, coisa e tal. Eu, brother, não tenho uma namorada nem sei a quanto tempo. Eu tô é pegando geral! – Disse meu amigo numa estrepitosa gargalhada, voltando em seguida a acompanhar num inglês bem razoável, o refrão da música responsável por sacudir os alto-falantes das portas. It’s a serious Business: sex, and violence and rock and roll! – Sacou a parada, Poeta? Muito doido esse som! – Dizia ainda aos berros, transtornado de excitação, agora, para o meu desconforto, já acelerando o carro e o fazendo rabear ruidosamente nas curvas. – Segura aí, Poeta! Sex and violence and rock and roll! – E falava alto e ria e cantava e acelerava o carro pelas ruas quase desertas. Sapão nem sequer se alterava.
Sapão, aliás, era sem dúvida um nome bastante adequado para aquele camarada corpulento, de cabeça raspada, bochechas inchadas, olhos esbugalhados, nariz achatado e uma boca hedionda que parecia dominar toda a porção meridional de seu abominável rosto. Indiferente à euforia do meu amigo, ele continuava impassível, encerrado no papel de sujeito perigoso, que havia escolhido representar para si. E até que representava bem, na aparência e nas atitudes. Reparei que mesmo com o som alto dava para ouvir sua respiração pesada por entre os dentes travados, coisa que lhe conferia um aspecto ainda mais animalesco. Sujeito sinistro, pensava eu, mas sem ligar muito para isso. De repente, como um vulcão adormecido que começa a rugir sua cratera, ouvi pela primeira vez a voz grave e imperativa dele:
– Para o carro aê, Nicinho.
Sem dizer nada, meu amigo abaixou o som e encostou o carro numa rua mais discreta, em frente ao muro de uma escola. Eu já suspeitando o que iam fazer, só conseguia pensar que não era exatamente aquele final de noite que eu pretendia para mim. Queria mesmo era o poema do Torquato. Além do mais, teria de acordar cedo para ir à faculdade e se tivesse ido a pé, uma hora daquelas eu já poderia estar na cama. Mas sem dizer nada, ia me deixando ficar, com a ideia fixa no poema. Eu sou como eu sou / pronome pessoal intransferível / do homem que iniciei / na medida do impossível. Exato. Era esse o começo. Aos poucos eu ia me lembrando. “Na medida do impossível”! Que lance genial, eu pensava. Viver na medida do impossível! É realmente assim que eu tenho vivido: justa ou injustamente, sempre na medida do impossível.
Sapão tirou do bolso um pacotinho e espalhou a cocaína sobre o painel do carro, ajeitando-a em montinhos e fileiras irregulares com a ajuda de uma carta de baralho.
– Porra, Sapão! – Disse Nicinho às gargalhadas. – Tu não sabe nem esticar uma carreira! Olha só que coisa mal arrumada! – Falava e ria ao mesmo tempo.
– Cala a boca, Nicinho! – Enraiveceu-se Sapão. – Tu fala pra caralho, velho! Vê se dá um tempo, porra! A merda do pó taí. Mete o nariz e para de encher o saco! – Disse com sua voz de mal humor permanente e abaixou-se no painel, aspirando o pó com um canudo feito de dinheiro.
Depois, Nicinho, sem parar de rir e de falar, tomou o canudo das mãos do amigo e foi a sua vez de se debruçar sobre o painel.
– Vai aí, Poeta? Vou preparar uma especial de principiante aí atrás pra tu. – Me disse o Nicinho, sempre simpático, ao aspirar toda a porção que lhe cabia e agora falando mais do que nunca. Nem sei se tu curte Poeta mas essa é da boa mesmo coisa fina pura pra caralho canal forte aí do Sapão boa mesmo tu vai gostar Eu te garanto! Vou bater uma pra tu aqui na caixinha da fita. Do caralho esse som do Lobão: sangue e porrada na madrugada! tá ouvindo? Sangue e porrada na madrugada! Vai aí Poeta olha só que beleza de carreirinha nada a ver com essas coisas mal acabadas aí do Sapão O cara não tem o menor senso estético Poeta! É um ogro, Poeta, um ogro! E tu Poeta precisa de um pouco de cocaine pra acelerar a tua mente. Tu é muito devagar, Poeta! Vamo lá! Vai aí! – Foi dizendo e me entregando com as mãos trêmulas de ansiedade, o canudo improvisado com uma nota de mil cruzados e a caixinha vazia da fita cassete que tocava no som do carro, agora em volume baixo para não chamar a atenção no silêncio da noite. – Vais cheirar uma carreirinha no bigode do Machado de Assis! – Disse ele às gargalhadas. – Poeta, o Sapão aí é tão burro que nem sabe quem foi o Machado de Assis. Foi um escritor, Sapão um escritor famoso pra caralho que taí na nota de mil. ele inventou uma personagem foda: a virgem dos lábios de mel! – Disse o epíteto fazendo voz de locutor romântico. – Foi ou não foi, Poeta? Acho que não era virgem porra nenhuma. Essa mulherada das antigas também dava pra caralho só que tudo na moita não tem erro davam sim. Né não, Poeta?
– Capitu, Nicinho.
– O que?! – Perguntou Nicinho com uma agressividade que até então eu desconhecia nele. – Porra, caralho! Vai tu tomar no meio do teu cu, meu irmão! Eu tô aqui trocando uma ideia na boa contigo e tu vem esculachando pro meu lado, porra! Qual é a tua, velho? Tá me estranhando, é?
– Não, Nicinho, eu disse Capitu. A personagem famosa do Machado de Assis é a Capitu, a dos olhos de ressaca. – Corrigi serenamente, já segurando o canudo e a caixinha com duas grossas fileiras de pó, meticulosamente arrumadas, sem saber direito o que fazer com elas, enquanto Nicinho, voltando às boas, disparava às gargalhadas a sua metralhadora verbal sem pontaria.
– Aê, Poeta! Cabeção, hein? Por isso é que eu gosto de conversar contigo! Tu é inteligente pra caralho! Nada a ver com esses playboy burro aí feito o Sapão! Acho que o único livro que ele já abriu na vida foi a lista telefônica, mesmo assim olhe lá! Até eu de vez em quando leio umas paradas aí. Mas eu não curto muito não, velho. Eu não tenho muito saco pra ler livro assistir novela essas porra de historinha de carochinha. Isso é pra intelectual aí feito tu ou pras vovozinha ou pras titia. Meu negócio, velho, é a real, tá ligado? a real. Mas esses caras aí feito o Sapão, é tudo uns analfabeto da porra, sacou? O cérebro deles já tá carcomido de tanta ideia errada e tanta merda no sangue. Esses daí não têm jeito mesmo. É tudo bucha de canhão, Tudo cachorro bravo a fim de meter os dentes. É só falar pega, tá ligado na parada, Poeta? – E rematou com uma gargalhada provocadora.
– Oh, meu irmão, não sei como é que tu aguenta esse cara! – Disse o Sapão virando-se para mim sem suavizar a expressão. Depois continuou, diretamente para o meu amigo. – Porra, Nicinho, tu não para de falar nem um minuto, caralho! Vê se dá um tempo, velho! Tu já tá me deixando nervoso de tanto falar na minha cabeça. – E tal enunciado atravessou os ouvidos de Nicinho como um ruído insignificante fora do campo dialógico.
– E então, Poeta? Vai ficar só segurando? Dá logo dois tecos e pronto! Fiz duas bonitinhas aí pra tu. – Continuou Nicinho, sempre rindo e falando alto, ignorando os maus bofes do Sapão, que não disse mais nada.
Aspirei então as duas carreiras, uma após a outra sentindo arderem as narinas. Era a segunda vez na vida que eu fazia aquilo, mas já podia dizer que não gostava, nem da experiência sensorial, nem da ansiedade que a droga me causava. Mesmo assim cheirei só para não ter mais de ficar segurando aquela caixinha e aquela nota de mil enrolada em canudo. Não sei o que eu estou fazendo aqui, eu pensava, com o gosto da cocaína pesando na garganta e já experimentando no corpo e na mente uma certa agitação nervosa. No entanto, a sensação de me sentir como um corpo deslocado da cena, de estar ali e ao mesmo tempo não estar, não era, eu sabia, um efeito direto do pó. No máximo, pode ser que naquele momento tal sensação estivesse potencializada e por isso me angustiasse ainda mais. De todo modo, aquela desconfortável sensação assombrava minha existência desde que eu me entendia por gente e me fazia sentir como se eu pertencesse a mesma comunidade de destino de poetas trágicos como o próprio torquato Neto. O fato de eu nunca conseguir me sentir presente por inteiro nas diversas situações da vida era com certeza a maior razão de meu comportamento arredio. Assim, enquanto minhas narinas escorriam o sabor químico que eu provava com a ponta da língua e que me adormecia os dentes, as ideias iam clareando até que em fim, num aparente rasgo de lucidez, eu pensei ter compreendido tudo.
De repente, agora eu parecia entender até mesmo o que tanto me tocava naquele poema, que eu ainda me esforçava para recordar por inteiro. Uma coisa eu via como certa. Se aquele poema tinha mesmo algo a me dizer, o recado começava já nos dois primeiros versos: “eu sou como eu sou / pronome pessoal intransferível”. Perfeito! Compreender isso podia ser algo libertador. Se tudo era assim, simples e cristalino como diziam esses versos, eu não tinha motivos para me martirizar por ser ou me sentir tão diferente de todo mundo. Eu seria como seria e poderia dar um foda-se para a opinião alheia. Os dois versos seguintes é que ainda me intrigavam. Eu não chegava a compreender o significado exato da expressão, “na medida do impossível”, mas sabia que de alguma maneira ela tinha a ver com as angústias que eu carregava comigo desde muito tempo. A segunda estrofe era aquela dos secretos dentes, de que eu gostava. Portanto, metade do poema eu já tinha conseguido me lembrar:
Eu sou como eu sou
pronome Pessoal intransferível
Do homem que iniciei
Na medida do impossível
Eu sou como eu sou
Agora
Sem grandes segredos dantes
Sem novos secretos dentes
Nesta hora
Eu estava tão mergulhado nesses pensamentos, que só reparei que o carro havia recomeçado a andar quando ouvi os pneus cantando em uma curva mais acentuada das estreitas ruas do bairro. Depois parou bruscamente e Nicinho desligou o som.
– Olha aqueles dois Sapão! – disse Nicinho apontando para a esquina. – – É agora! Pega!
Foi tudo muito rápido. Num instante, Sapão e ele saltaram do carro deixando as portas abertas e correram na direção do casal que namorava encostado a um muro, o qual fugiu assustado ao vê-los se aproximar. Sapão tinha nas mãos uma espécie de porrete, taco de baseball ou qualquer coisa parecida. De dentro do carro fiquei olhando perplexo, ainda sem entender o que estava se passando. A rua era escura e não dava para ver direito. Ouvi gritos e um princípio de confusão. Pelas vozes entendi que não se tratavam de um cara e uma menina, mas sim de dois carinhas. Um deles passou correndo pelo carro e no caminho atirou qualquer coisa como uma pedra, que explodiu na lataria, bem a minha direita. A coisa tinha ficado séria. Na esquina, Nicinho e Sapão agrediam o outro rapaz com socos, pontapés e golpes de bastão.
Entrei em pânico e não tive coragem de descer do carro. Eu não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo bem na minha frente. A cocaína agora era uma sensação ainda mais desagradável a me apertar a garganta e os dentes, provocando-me taquicardia e uma vontade desesperada de não estar ali. Comecei a suar frio e minha mandíbula simplesmente travou. Nicinho e Sapão voltaram correndo para dentro do carro, bateram as portas e saímos em disparada, cantando os pneus, deixando o outro cara caído na calçada e eu em choque sem conseguir articular uma palavra sequer.
– Veados filhos da puta! – Bradava Nicinho transtornado, enquanto dirigia feito um louco pelas ruas estreitas. – Vambora pegar o outro! Esses putos têm que entender que aqui na minha área não é lugar de veado.
– Bora pegar! – Disse Sapão, batendo com o porrete na palma da mão e pela primeira vez sorrindo, um riso feito de maldade e dentes de chumbo. – Pode ficar tranquilo, velho, que aquele lá atrás acho que não levanta mais. – E emendou com uma gargalhada que me deu calafrios e aumentou ainda mais o meu pânico.
– Porra! O que vocês estão fazendo? – Consegui perguntar enquanto era sacudido pela velocidade do carro dobrando o quarteirão. Porém a pergunta me saiu com muito menos ênfase do que eu pretendia.
– Fica na tua aí, Poeta! Isso daqui não é historinha de livro não. It’s a serious Business, tá ligado? Agora o bicho pegou de verdade, sacou?! – Vociferou Nicinho, sem olhar para trás. – Esses caras são indecentes. Uns filhos da puta, mas vão aprender que o Hades é um bairro de responsa E aqui não é lugar pra veadagem.
O carro parou de qualquer jeito no meio de um quarteirão pouco iluminado e os dois desceram rápido. Sapão bateu a porta e correu na frente carregando o porrete. “Fica aí, Poeta”,, me disse Nicinho antes de bater também a sua porta e seguir atrás do Sapão. Este já ia correndo tentando alcançar o outro cara, que descia a rua gritando por socorro, numa carreira desabalada. Permaneci ali fechado no carro sem saber o que fazer, pois afora as briguinhas da infância, eu nunca na vida havia lidado com uma situação real de violência. Além do mais, para mim não fazia o menor sentido agredir daquele jeito dois caras que não estavam fazendo mal a ninguém, apenas por lhes considerar indecentes. O que afinal era ser indecente? Eu me perguntava. Mas não conseguia reagir, assustado que estava e ainda sentindo na mente e no corpo os efeitos desestabilizadores do pó. No meio daquilo tudo a palavra indecente brilhou na minha cabeça como uma nota de cristal e me acendeu a vívida lembrança de mais uma parte do poema:
Eu sou como eu sou
presente
Desferrolhado indecente
Feito um pedaço de mim
Lembrar de mais um trecho do poema me trouxe sem querer uma alegria extemporânea. Como de costume, logo abstraí minha consciência da cena real que eu vivia ali de madrugada fechado naquele carro. Estava drogado, testemunhando involuntariamente a ação truculenta de um amigo e seu comparsa, contra dois indivíduos aparentemente sem defesa; uma ação motivada pela intolerância e pelo sadismo, com a qual eu não concordava, mas que também não tinha forças para impedir. “Agora eu já tenho quase todo o poema”. Eu pensava como se nem estivesse mais ali. “Faltam apenas os últimos versos”.
Na medida em que eu reconstituía mentalmente o poema, ia me afastando daquela indesejada ocorrência e me reconciliando parcialmente com o pedaço de mim, que desde sempre me fizera vagar feito um fantasma por entre os acontecimentos ordinários da vida. Viver o presente por inteiro, ser como se é, valorizando as próprias experiências, sabendo de antemão que nunca se vai a lugar nenhum que seja previsível e permanente, e mesmo assim sentir-se em paz com a própria existência: tal era a lição que de maneira precária eu extraía daqueles versos, sem no entanto ter a mínima certeza de que realmente era isso mesmo que o autor queria dizer. Portanto, essa fugidia intuição, não era suficiente para me garantir alguma segurança quanto aos meus pensamentos e ações, de modo que a inquietude não me abandonava por inteiro.
Àquela altura porém, sem contar o poema do Torquato e o meu próprio corpo doente, tudo em volta parecia ter cessado de existir. Minha namorada, a noite, o bairro, o busão sonolento, as quatro pistas da avenida, o carro possante com seu estofado de couro novinho, as guitarras de John Cougar, as risadas divertidas do Nicinho, o mau humor do Sapão, os dois caras se beijando, as agressões, minha inerte indignação, naquele momento nenhuma dessas coisas me dizia mais respeito. Eram como se pertencessem a uma outra vida, ou fizessem parte de uma alucinação distante, pois no interior daquela bolha de ferro onde já não havia vestígios de realidade externa, estávamos apenas eu e o poema que aos poucos emergia na minha sofrível lembrança.
Voltei à realidade quando de repente meio sem querer, olhei para fora através do parabrisa traseiro e avistei bem na esquina, a luz amarelada da placa de um estabelecimento comercial. Era o Seu Caneco, um boteco copo sujo muito conhecido na região, frequentado por bebedores de cachaça e moradores da comunidade vizinha, os quais nunca mantiveram uma boa relação com a rapaziada do bairro. Em pé do lado de fora, estavam uns cinco ou seis caras visivelmente bêbados. Falavam alto e apontavam com gestos angulosos na direção do carro em que eu estava. Pela distância e com os vidros quase totalmente fechados não dava para ouvir o que diziam. A expressão deles não era boa. Não riam nem cantavam como fazem os bêbados de paz. O mais alto tinha nas mãos uma garrafa. Um mau pressentimento e o instinto de não sei o que me fizeram deitar entre os bancos a fim de que não me vissem.
Ouvi quando eles se aproximaram do carro. Pareciam mesmo bastante agitados. Meu nariz ainda gotejava o sabor químico da cocaína. Os dentes estavam adormecidos e mastigavam nervosos a pouca saliva que me restava. Eu puxava com força o ar e o cheiro provocante do pó tomava de assalto as terminações nervosas de minhas narinas. O estômago se contraía e o pulso acelerava. Medo. Fissura. Quero mais uma carreirinha. Mais uma só e tá bom. Nicinho e Sapão estão demorando demais! Não precisavam fazer isso. E esses caras aí em volta do carro? Qual é a deles?
Calma, Eduardo. Você precisa pensar é no poema. Falta quase nada pra lembrar. Daqui a pouco você vai pra casa. Amanhã tem faculdade: aula de Poética, sobre poesia marginal. Tem horas que eu prefiro ser só o Eduardo mesmo, sem essa de PV ou FO, só Eduardo mesmo. Torquato Neto se matou no dia em que completou vinte e oito anos. Eu ainda vou fazer vinte. O que ele estaria escrevendo hoje? O que eu deveria escrever para merecer esse nome de poeta? Ele era um contestador vocacionado para auto destruição, na melhor tradição dos poetas românticos de outros tempos. Não segurou a onda do estilhaçamento de sua personalidade doentia em face aos caminhos e descaminhos daquela geração dos setenta, marcada pelos horrores da ditadura e pelo desbunde flower power. E quanto a mim? Covarde? Inerte? Como enxergar o mundo para além dessa vida cretina?
Tirante as minhas próprias inquietações, era mais ou menos isso que eu pretendia dizer no seminário da próxima aula, sobre a estética da poesia marginal brasileira. Mas ali onde eu estava não havia poesia. Tudo era apenas angústia e aflição: pela droga que agora me faltava; por minha constante peleja com a memória; pela abominável violência que eu testemunhava; pela minha fraqueza de vontade; pelas ameaças dos bêbados furiosos que cercavam o carro e começavam a sacudi-lo aos gritos de quebra que é dos playboy.
Os últimos versos me vieram então como uma epifania: eu sou como eu sou / vidente / e vivo tranquilamente / todas as horas do fim. E nesse momento, o primeiro caco de vidro me rasgou o olho.
Sobre o autor:
Flávio Couto e Silva de Oliveira tem 54 anos e nasceu em Vacaria (Rio Grande do Sul), mas há 50 anos vive em Belo Horizonte. Sua incursão pela literatura lhe rendeu, em 2000, o primeiro lugar na categoria ensaio do concurso nacional de literatura Cidade de Belo Horizonte, com o trabalho, “Signos e Aprendizagem nas Memórias de Músicos Cegos”. Em sua tese de doutorado, Flávio estudou os efeitos da educação musical escolar por meio do canto coletivo em escolas primárias, durante as décadas de 1920 e 1930. Possui artigos e capítulos de livros sobre educação musical, aprimoramento dos sentidos e cidadania, publicados no Brasil e no exterior.
Flávio Couto na Quixote-Do:
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Esse é um dos contos de Flávio Oliveira que mais me toca!! Um conto pelo qual eu gosto de ser “incomodada”. Um conto que volta e meia vem na minha mente. Eu “vejo” tudo acontecendo. Uma obra prima!!