Foi o melhor dos tempos. Foi o pior dos tempos.
O século XIX, inflamado pelo idealismo romântico, viu nascer a noção da “arte pela arte”. Ideal, que embora confuso, foi entendido por muitos pela apreciação da arte motivada apenas pelo prazer estético. Não importa se “prazer”, “estética” e até mesmo “arte” sejam conceitos complexos que demandam um outro sem número de conceitos para serem compreendidos. Ao mesmo tempo, a ideia da função da arte, motivada pela dupla Marx e Engels, também germinou, questionando os valores da manifestação artística como parte do jogo de poder dentro da sociedade.
A política tem lugar na arte e na cultura? E a arte e a cultura têm lugar na política?
O curioso é que antes deste cisma, um poeta inglês unia as duas vertentes. Para Percy Bysshe Shelley, poetas eram legisladores do mundo. Quando ele faleceu em um naufrágio, a família, da aristocracia britânica, censurou a publicação das obras mais políticas do autor e ele acabou ganhando fama por sua poesia lírica, sentimental e romântica, especialmente por conta da história trágica do casamento com Mary, a criadora do Frankenstein. Décadas depois com a publicação de suas outras obras, descobriu-se que era um radical, cujo soneto mais famoso, Ozymandias, fala da decadência dos grandes impérios, apesar da pretensão de imortalidade de seus líderes:
“Contemplai as minhas obras, ó poderosos e desesperai-vos!
Nada mais resta: em redor a decadência
Daquele destroço colossal, sem limite e vazio
As areias solitárias e planas se espalham para longe…”
Durante a última década essa questão voltou a ter importância. Foram temas influentes nas eleições presidenciais americanas e na brasileira. A desvalorização da cultura brasileira passou pelo distanciamento da classe artística do poder político e, como resultado, levou a um esvaziamento intelectual da discussão dos temas de importância social. Sem um farol, o navio afundou.
Mas a perceção dos artistas não caminha só. Os filósofos sabem se guiar pelo nevoeiro que é a luta ideológica na sociedade. O conceito de cena utilizado por Rancière é aparentemente bem direto: no palco, como em uma peça, temos um conflito. As classes duelam, não com espadas falsas, mas com diálogos. Neste palco, Política e Arte se encontram em um balcão e se enamoram. A sociedade, ou a cena, tem seus personagens e a filosofia não permite a exclusão de nenhum deles. De fato, seguir o raciocínio de Rancière, nos permite entender que exclusão de qualquer personagem de uma cena é planejada. Está no roteiro. Resta saber por quem.
Trazer para o português a possibilidade de diálogo com Rancière, entrevistado por Adnen Jdey, é uma contribuição da luta pela cultura do Brasil. Dialogar e estar em cena com Rancière, nos permite entender parte da discussão sobre a cultura nacional, que teve grande importância e impacto nos movimentos políticos recentes.
Conheça O método da cena para não ficar apenas na plateia aplaudindo.
Sobre os autores: Jacques Rancière, filósofo e professor emérito da Universidade de Paris VIII, é uma referência fundamental do pensamento contemporâneo, tendo a sua vasta obra marcado as últimas décadas. Os seus textos abarcam temas tão diversos como a pedagogia, a historiografia, a filosofia, o cinema, a estética e a arte contemporânea. Se a diversidade e a riqueza temática redundam numa vasta obra de difícil classificação, cumprem certamente o objetivo do autor: o esbatimento de fronteiras entre áreas e disciplinas do saber.
Adnen Jdey, editor e professor de história do cinema, é pesquisador da Universidade de Tunis.
Sobre a tradutora: Ângela Cristina Salgueiro Marques é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG, onde cursou mestrado e doutorado em Comunicação. É pós doutora pela Universidade Stendhal Grenoble III, da França. Autora de artigos publicados em revistas do Brasil e do exterior.