por João Camilo Torres
Meu pai seria um péssimo livreiro.
Quando pequeno, entre os 9 e 12 anos, eu pedia livros como presente no aniversário, natal, dia das crianças, o que fosse. Em geral, livros de Arthur Clarke ou da Agatha Christie. Na maioria das vezes, livros da Agatha Christie com o Hercule Poirot. Não eram vinte livros, eram dois ou três e em poucos dias já não havia nada de novo para ser lido. Como meu aniversário é em abril, eram seis meses de espera até o dia das crianças e eu ficava aporrinhando meu pai: quero mais livros.
Um dia ele respondeu: tem um monte de livros aqui em casa.
Ele não estava falando dos livros que ficavam na estante de madeira, onde enfiávamos, eu e minhas irmãs, os nossos livros e os exigidos pela escola, nem sobre a enciclopédia Barsa. Eram os livros do escritório, que ficavam naquelas estantes de aço desmontáveis. Livros como aquela coleção da Editora Aguilar, de mão, capa dura, ou até mesmo aquela coleção da Abril Cultural de clássicos, que era vendida em bancas de revistas. De certa forma fui promovido: a partir de então, eu poderia mexer neles, sem precisar fechar a porta, para ninguém ver.
Qual? Eu respondi. Eu sabia que não havia Agatha Christie ali.
E ele me mostrou Crime e Castigo do Dostoievsky. Eram dois volumes, de capa marrom, com um desenho dourado do Kremlin. Era bonita. As bordas das páginas também eram douradas e havia uma fitinha de marcador de página. Eu acreditei. Tinha crime no título, afinal de contas. E li.
Detestei. Só fui até o final por que ainda acreditava naquela superstição de que um livro para ser lido, precisa ser lido até a última página.
Não sei se o meu pai estava rindo internamente ao dar sugestão, mas os livros estavam novinhos. Havia alguns outros livros nas prateleiras mais baixas, pois meu pai viajava muito: brochuras baratas de mão, em geral ficção científica (a primeira vez que me deixou ficar acordado durante toda a madrugada foi para assistir 2001: uma odisseia no espaço quando foi exibido pela primeira vez na televisão, tão entusiasmado que estava), alguns policiais, do tipo hard boiled e até Tintin e Asterix. Literatura de aeroporto. O que importa é que os livros estavam lá.
Estamos falando dos anos 70 e 80. Quem comprou os livros e montou a biblioteca foi o meu pai. Não era para ele, nem eram os livros que apenas herdara do meu avô (esses continuavam na estante mais alta, longe do alcance e protegidos pela aura do nosso nome na lombada), mas para nós. Vários deles, inclusive as brochuras baratas (que incluíam Isaac Asimov, Arthur Clarke e Philip K.Dick) ainda estão comigo, na mesma estante de aço. Acredito que muitas bibliotecas que existiam nas casas nesta época, foram compradas pelos pais, que controlavam as finanças no período.
Se hoje, as pesquisas mostram uma influência maior das mães na formação dos leitores, fico imaginando se isso não é por causa do modelo: o homem cuidava de prover os bens e a mulher de como eram utilizados dentro da casa.
Isso não impede de conhecermos bibliotecas montadas por mães e pais que influenciaram os jovens leitores. Borges conta que descobriu o que era poesia ouvindo o pai lendo a Ode to a Nightingale de John Keats na biblioteca de casa, quando criança afinal de contas.
Alguns anos depois, voltei a ler Crime e Castigo. Se não leio tanto Dostoievski hoje em dia é por que foi um autor da minha juventude. Combina, é uma época própria às angustias existenciais. Deixar de ser criança não foi tão importante. Deixei de ganhar presentes, mas passei a frequentar a Biblioteca Luiz de Bessa. Mas essa é outra história.
João Camilo Torres
Podcaster, ensaísta, escritor de contos, blogueiro da Quixote+Do e roteirista da revista Sci-Fic Punk Project.