minicontos
por Fernando Armando Ribeiro
Preguiça
Era um lindo sábado de sol, e os jornais anunciavam as florações da primavera. Colegas de trabalho haviam marcado um almoço, e amigos um passeio de bicicleta pela orla. Mas José, colado à cama, renunciava a todos os convites do dia. De pernas para o alto, e indiferente aos anúncios da Black Friday, não concebia outro movimento que o dos lábios arqueando num sorriso.
Gula
Tinha um gosto tão grande pela vida, que sentia como se pudesse devorá-la. Não sabendo, porém, como lamber a lua, abocanhar as nuvens e beber o oceano, consumia com voracidade sorvetes, bolos e refrigerantes. Aos médicos dizia que não se exercitava, mas caminhava todos os dias pela praia, momentos em que sentia como se estivesse a devorar o mundo. Às vezes, sem saber porque, chorava. E comendo churros secava essas lágrimas, que raramente eram de tristeza.
Ira
Com um chute espantou o cão que atravessava seu caminho e saiu da garagem indiferente à gentil saudação do porteiro. Esmurrou a buzina ao motorista que entrara um pouco na faixa de pedestres e, na porta da escola, estacionou o carro em fila dupla. Dali partiu em tal velocidade que em minutos deixara o filho em casa, chegando por fim ao local da manifestação. Abrindo o porta-malas retirou o cartaz que carregaria com vigor naquele dia: “Diga não à violência!”.
Luxúria
No clímax do ato, o homem olhou mais uma vez o espelho. Ali não viu, contudo, a mulher belamente nua diante de si. Contemplou o azul de seus próprios olhos e o corpo que ainda conservava algo do antigo tônus muscular. A mulher, porém, não recebia nenhuma acolhida do espelho. Assim como outras, lhe havia declarado seu amor, e em vão lhe fizera promessas. Mas palavras nunca bastavam, o coito era o único refúgio ao temor da rejeição. Estava condenado a buscá-lo. Instante fugaz de um desejo testificado na fidelidade dos espelhos.
Avareza
Amava contemplar-se no ouro, no dinheiro, nos imóveis, e sentia dores físicas diante dos impostos. Antes de fechar um bom negócio, era comum correr ao banheiro para masturbar-se. Rezava todas as noites pelo fim da pobreza, pois não suportava ver pessoas doando dinheiro aos pobres. Certa vez, teve febre e náusea ao testemunhar uma senhora entregar a um mendigo deficiente tudo o que tinha na carteira. Se algum dia lhe exigissem aquilo, preferia entregar o próprio braço.
Soberba
Ainda menino, na pequena fazenda onde moravam, notavam-lhe a mania de grandeza e um jeito estranho de olhar. Entre os irmãos, em tudo queria ser o primeiro. Certa vez fugiu de casa por não ter sido elogiado como o melhor aparteador de gado. Homem feito, na cidade, com frequência proclamava-se humilde, ocasiões em que exibia na face o mesmo olhar estranho dos tempos de menino.
Inveja
Tinha fascínio por aquele andar, aquele olhar, aquele sorriso. Não podendo roubá-los, contudo, usava os mesmos sapatos, óculos e batom que sua prima. E assim procurava aplacar a cada dia, o estranho e insaciável desejo de deixar de ser si mesma.
Fernando Armando Ribeiro na Quixote-Do:
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