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A Bisa

Crônicas cotidianas, de Rodrigo Pazzinatto

*Baseado em uma história real*

 

A bisa Nenê, que acabara de completar 92 anos, descansava velha e tranquila em um sofá também velho, quando entrei respirando rápido. Ela sorriu com a simpatia das senhorinhas de bem com a vida, convidando muda a entrar. O caminho do encontro era próximo, mas cheio de armadilhas. Eram plantas, passarinhos e vasos que tornavam a visita uma aventura em que cada passo era indeterminado. Bisa Nenê malemá conseguia enxergar, mas gesticulava atenciosa, com a cuidadora ao seu lado, elegante e asseada.  

Como médico, fui ao seu encontro preocupado com a circulação do novo vírus e logo passei as indicações para Celenita, que executaria com prudência os cuidados necessários; para com ela e a bisa.

– Álcool gel nas mãos – concordou Celenita.

Junto a outras preocupações, família, trabalho, pandemia, retirei-me com pesar e fiz um gentil aceno para bisa Nenê, tão discreto que tive medo de passar despercebido. Acostumado aos calorosos beijos e abraços, senti-me estranho.

Passei a refletir sobre pequenos gestos cotidianos, como a mão que passa no rosto para aliviar uma coceirinha, um cumprimento caloroso no trabalho e as risadas próximas aos amigos. Fiquei pensando no abraço não dado, na bisa distante, nos gestos calculados, como se tivesse que reprogramar o cérebro, mas compreendia o caráter passageiro dos dias ruins. 

Já no final da tarde, a cuidadora meio atrapalhada, mas dedicada, me ligou com preocupações:

– Bisa Nenê está agitada e com dores no corpo. Precisa de um atendimento urgente!

– Deixe-me falar com ela, antes passe álcool no telefone.

– O álcool acabou.

– Como assim? Estava cheio… mas… deixa pra lá. Preciso conversar com bisa. Um abraço!

– Outro. Nenêeeeeee… telefone!

– Olá querido!

– Oi bisa, como está?

– Saiu do jeito que entrou, nem pude te dar um beijo.

– São esses tempos, logo vai passar.

– Eu estou com dor no corpo. No corpo todo, dos pés à cabeça!

– Nossa bisa, preciso ver a senhora! Aguente uns minutos. Já que chego.

E desligamos. Saí de casa com preocupações ruminando em pensamentos. Ensimesmado com a idade e a delicadeza de bisa Nenê, não estava preparado para despedidas eternas.

Ao chegar, estava bisa inquieta, gesticulando, pedindo para examiná-la. Atravessei os passarinhos, vasos e plantas, quase tropecei no frasco de álcool gel caído no chão, até que alcancei-a e toquei nos seus braços, que estavam estranhamente grudentos. A cuidadora preocupada, a bisa falando, o passarinho piando, os pensamentos girando, estava um pandepá!

– Estou toda ardendo! Reclamou bisa Nenê.

– O que aconteceu Celenita?

– Estava bem. Até que dei um banho nela e depois passei o gel. E olha que fiz direitinho, não ficou um centímetro desprotegido!

Dos males, o menor. Bisa Nenê só precisava de um banho, e depois novas orientações para a cuidadora, que álcool gel é só nas mãos e não para besuntar o corpo todo.

Rodrigo Pazzinatto na Quixote-Do:

1 comentário em “A Bisa”

  1. Valéria Bahia

    Kkkkk…antes isso
    Adorei Rodrigo tão preocupado em não ficar muito tempo perto dela …para o bem dela…que se esqueceu de avisar que o álcool gel era só para as mãos ,bom que pode revê la ♥️

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