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Nem te toquei marcelo pimenta mulher janela

Sem te tocar

Marcelo Pimenta

Março 2020

 

Ainda estou aqui. Você me abre prescrita, não me toca, te vejo puxando gavetas, manuseando caixas, são pequenas, caixas guardadas parecem sempre pequenas. Você estica fotografias decoradas, ressecadas, suas lembranças foram se quebrando, talvez queira guardá-las em outra caixa de gaveta, um pedaço de filme, peças de um jogo com as pontas gastas. Talvez queira remontar, ali um tapete que você não comprou, sentar-se no chão, espalhar suas peças, por dias inteiros poderá trilhar as peças em sequências diferentes, para caber nas caixas, poderá repeti-las em outras sequências e poderá guardá-las também, uma dentro da outra, onde quiser, ficarei com você.

Sou apenas uma malabarista, não sei tocar nenhum instrumento, consigo manter todos no ar, rodando, se o tempo parasse, se eu virasse uma de suas peças, você veria, na verdade não toco nada, se aceitasse um pedaço de mim, com disfarce, há regras e não posso manifestar nada, se aceitasse, te diria para colocar uma música mínima, enquanto encolhe sua vista nessas trilhas, você ouviria uma melodia, não te tocaria, como meus instrumentos no ar, rondaria pelo tapete onde se rendeu, poderia passar sua mão desocupada, pelo de peças canônicas caindo, o tapete sonoro você alisaria em sentidos diversos, poderia guardá-los nas caixas, e, sem arranhar seus discos, poderia até usar aquelas mesmas onde se hospedou com as fotos, legendas presas nas rendas que você desvendou, quando seu olhar te enganou, quando guardou os sentidos você nunca tocou, até que se sentou aqui, nestes dias abafados por ruas vazias, nesse tapete enrugado, você comprou, eu ainda não existia assim tão existida, não tinha te jogado notas, são poucas, não precisamos de muitas para embalar a melancolia de estarmos juntas, você nem me viu, ainda estou aqui.

Fecha também. Você sabe, esses dias passam e quando notar eu já fui, deixei tudo simultâneo, levei seu óbvio. Naquela tarde, quando te reparei, tinha música grudada em seus olhos, por isso fiquei e te disse, o ritmo paciente, volume desinteressado, para te dar um tempo ausente, poucas notas, talvez tenha pulado, você pode ter engolido o tédio asfixiado, mas quando fiquei você me respirou, eu malabarista de ar, de nem tocar.

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